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2 de dezembro de 2008

Freud: aventura e medicina *


"O que é instrutivo no episódio da cocaína é a luz que ele lança sobre o modo característico de Freud trabalhar. No trabalho científico, as pessoas continuamente preterem uma observação isolada quando esta não parece ter qualquer conexão com outros dados ou com o conhecimento geral. Freud não fazia isso. O fato isolado o fascinava... Observou em sua própria pessoa que a cocaína podia paralisar algum elemento perturbador e assim liberar sua vitalidade normal plena. Ele generalizou a partir dessa única observação..." (Jones:1989:1:106/7)


Um ano antes de Simão Bacamarte aparecer em Itaguaí, isto é, em 1881, Sigismund Freud formava-se em Medicina pela Universidade de Viena, deixando à margem o “ïs” do prenome e o Schlomo do avô paterno, para assinar-se Dr. Sigmund Freud. Vinha de oito anos freqüentando um curso cuja duração normal seria de apenas cinco. Andara passando por reprovações e coisas do gênero: indeciso quanto à orientação profissional. Pensara em ser general, ministro, advogado, comerciante, menos médico. Ernest Jones, seu comensal e biógrafo oficial, relatou que ele

"Não ocultou, em épocas posteriores, que nunca se sentiu à vontade na profissão médica e não parecia a si mesmo um profissional regular da medicina. Posso lembrar que em 1910 ele expressava enfaticamente o desejo de que pudesse afastar-se da prática médica... " (Jones:1989:1:40)

Durante os tempos de estudante universitário preferia as aulas de filosofia do professor Franz Brentano, com quem aprendia Metafísica e se empolgava com a Teologia de Feuerbach. (Gay:1989:43) Não tinha nem a paciência nem a objetividade necessária para as ciências experimentais. À maneira de Simão Bacamarte, dava-se muito melhor com as intuições pessoais, generalizações simplesmente empíricas, sem considerações para teorias anteriores ou comunidades científicas. Era um intuitivo e procedia por iluminações:

"Quando pegava um fato simples, sentia e sabia que se tratava de um exemplo de algo geral ou universal, sendo-lhe inteiramente estranha a idéia de coletar estatísticas sobre a questão. Uma das coisas pelas quais foi reprovado por outros estudiosos..." (Jones:1989:1:107)

Não podia arranjar-se nos espaços de uma medicina que se apegava sempre mais aos dados da experimentação, teórica e estatisticamente controlada. Somente nos domínios da psiquiatria é que divisava a oportunidade de instalar-se com um mínimo de possibilidades profissionais. Ela também vinha na contramão da medicina, teimando em manter-se no modelo clínico da idade clássica, onde a especulação a partir dos dados exclusivamente clínicos falava mais alto. Acabou em rota de colisão com seus mestres da Universidade de Viena, em que:

"...o corpo docente de medicina formava uma confraria magnífica, altamente seleta. Seus membros, em sua maioria, haviam sido importados da Alemanha: Carl Claus que chefiava o Instituto de Anatomia Comparada, fora recém transferido de Gottingen; Ernest Bruck, o famoso fisiologista, e Hermann Nothnagel, que comandava o Departamento de Medicina de Doenças Internas, tinham nascido no norte da Alemanha e se formado em Berlim; Theodor Billroth, um famoso cirurgião, fora atraído a Viena depois de ocupar cátedra em sua Alemanha natal e em Zurique. Esses professores, luminares em seus campos, davam um ar de distinção intelectual e amplitude cosmopolita à provinciana Viena." (Gay:1989:44)

Por outro lado, havia as dificuldades de uma situação financeira extremamente difícil: era judeu e pobre, numa Viena de anti-semitismo crescente. O socorro chegava-lhe sob a forma de empréstimos regulares, da parte do melhor amigo da época para ele e toda a família do Sr. Jacob: Dr. Breuer. Somente uma grande descoberta, algo extraordinário, poderia tirá-los daquela condição. Era o que lhe ocorria com todas as forças, a cada chance que vislumbrava.

"... agora começa a preocupação de manter o terreno ganho e de encontrar algo mais para deslumbrar todo mundo, tirando um trunfo da manga que não apenas receba a aprovação de alguns poucos, como também possa despertar a atenção geral , única maneira de ser traduzido em termos de dinheiro." (Cesarotto:1989:29)

(...)
Pedro Bertolino
Filósofo/Antropólogo/Escritor
Professor Aposentado pela UFSC

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*Leia o artigo na íntegra no site do NUCA:
www.nuca.org.br

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